Ouvir um quadro, - a leitura sonora que José Saramago faz da tapeçaria alegórica dos sentidos "La Dame à la Licorne" (séc. XVI): O o u v i d o.
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“La Dame à la Licorne” - L'Ouie (O Ouvido).Conjunto de tapeçaria do séc. XVI que ilustra os sentidos. |
O primeiro som, aquele de que todos os outros virão a nascer, filhos, discípulos ou gomos, ou bagos de romã justapostos, ou favos que se respondem como a luz de uma velha entre espelhos paralelos, o primeiro som, em tão grande silêncio nascido que poderia ser a primeira de todas as vagas quebrada sob os nevoeiros e as sombras do mundo recém-criado
o primeiro som é apenas o da corrente de ar que nos foles do órgão se introduz,
ou talvez não,
o primeiro som será o da respiração necessária para que a donzela aia faça o tão pouco esforço de levantar o punho do fole, e neste e nos pulmões o ar circulando com o secreto rumor da seda arrastada na lua, que por longe ser não ouvimos mas sabemos, e sem que percebendo-se percorre o interior das narinas húmidas e vivas, e docemente inflando os pulmões e também a escuridão interior do fole de pele curtida, ainda cheirante ao fartum quente dos gados nos currais ou no chão solto e macio das grandes sestas sob as árvores, e quem sabe se distante contendo o tilintar finíssimo das campainhas dos rebanhos em manhãs também de névoa de um mundo muito mais velho.
Esse, ou este, ou ambos porque mutuamente se requerem, são o primeiro som.
A música ainda não se ouve, esta é a última pausa viva, o segundo final de consolação dos afogados que no ponto de morrer revivem: todos os sons estão neste primeiro, e todos são o mesmo silêncio, ou a mesma demonstração da sua impossibilidade.
Antes, a ponta-de-prata traçou todas as figuras do cartão, criando uma forma de paisagem rumorosa, e também de gente e animais que um cego reteria na memória dos sons, não em sinais identificáveis, mas como uma construção aérea de música concreta, feita de arabescos, de miúdas pausas, de súbitas raspagens, de longas brechas rasgando-se, tal seriam os silvos das espadas cortando o ar, e sempre a respiração calma ou rápida, consoante na superfície do cartão a ponta-de-prata traçasse o largo movimento das saias das donzelas ou afilasse a espiralada defesa do unicórnio.
Muito antes da tapeçaria houve outro primeiro som, este da ponta-de-prata vincando o desenho, guiada pelos olhos e a mão, dando ao traço o seu efémero gêmeo que é o som, só existente em cada momento, como o presente movediço entre um passado que por vivido se cobre de incertezas e um futuro que só simplificadamente pode ser adivinhado.
Fechando nós os olhos, poderíamos pensar que os traços se exprimem sonoramente ao nascerem, ou que, pelo contrário, são os sons que deixam como herança e sinal de passagem, antes de tombarem no silêncio do já acontecido, aquelas mil flores, os animais minúsculos que parecem espantados de serem, as duas graves raparigas, o leão e o unicórnio, o órgão frágil que devagar inspira para fazer nascer outro primeiro som.
Não precisa o debuxador de manter imobilizados diante de si os modelos que vai fixar no cartão. Em folhas soltas começou por figurar o cordeiro e a raposa, a lebre e o coelho, o lobo e o lebreu, e o pato bravo que, livre ainda, já se retorce e arqueja e grasna e cai porque o falcão vem cortando os ares, ele sim detido no voo por misericórdia do artista, senhor de não querer que num céu coberto de flores façam obra de morte as garras e os bicos.
Nenhum mal irá acontecer aqui. Os animais esperam pacientemente a música, e deles não virá rumor. Mas em corredores sonoros como cisternas ecoam os passos da dona do solar, ou sua filha, e os pesados tecidos de ouro arrastam sobre as lajes os veludos lavrados, os mantos franjados de peles. O rápido vulto apenas ajuda a memória de rostos claros, de testas arqueadas ainda medievais, de uma gravidade que oculta vestígios certos do demônio, talvez mostrados nos olhos dilatados do leão e no urro sufocado que lhe denunciaria o desejo. Ventos contrários se juntam no desenho para que não sejam deste mundo a bandeira e o estandarte das três luas, no intervalo dos quais haverá de nascer o primeiro som soprado pelos tubos do órgão.
Porém, recatadas seriam as mãos das damas que de perto ao debuxador se não mostraram nunca, pois as suas próprias, grosseiras de homem, tomou por modelo, e assim no desenho vieram a ficar e depois na tapeçaria, por igual causa das mãos do tecelão.
A ponta-de-prata desliza no cartão, abrindo um levíssimo suspiro de sombra no limiar da claridade ofuscante do unicórnio.
Animal macho como o debuxador que vai agora traçar o seu retrato verdadeiro, o seu de si mesmo retrato, na melancolia dos olhos, na dobra vencida dos joelhos, enquanto a defesa longa e aguda, o chifre branco, se ergue para o ar, afastado do objecto do seu desejo. Nos pulsos do debuxador as veias batem, e entre os segredos do peito, como no interior duma gruta, ressoa a insistente pergunta e a fugidia resposta do coração. O chifre branco detém-se no ar e nenhuma donzela gritará nesta hora a sua ansiada dor de mulher.
Só falta cobrir de flores todo o espaço livre, ir procurá-las aos campos, dispô-las em molhos sobre a mesa, e copiar cuidadosamente, sem invenção acrescentada, as folhagens e as pétalas, macias ou ásperas aquelas, dispostas estas em cachos ou em estrelas, em grinaldas e iluminações. E feito isto, que demorado foi, sobre a tábua se pousará com um rumor claro a ponta-de-prata, agora inútil, como o chifre do unicórnio, mas tendo ela fecundado e ele não. Posto o que será a vez das cores sensíveis, para que o cartão apareça enfim na sua glória de vermelhos e azuis de chumbo, onde o pêlo dos animais e a pele humana declaram uma evidente fraternidade, e onde os verdes se degradam em inumeráveis ecos de azul para que desta maneira se invente outro jardim.
É o tempo de um silêncio para ouvidos humanos, enquanto sobre o mundo raso dos cartões as figuras se ajustam devagar, e as tintas, secando, se contraem murmurantes de inaudíveis crepitações.
Descem, por necessários, os rebanhos da montanha. O tempo ainda que muito se esperou, acaba por sempre chegar, e neste dia se hão-de desprender do corpo das ovelhas os focos espessos e crespos da lã, caindo ao redor como neve ou branda penugem de ave, enquanto a tesoura morde e estala, rente à pele rósea que estremece. Todo o chão se cobriu de lã, e quando às braçadas a levantam, e depois amontoam, seria silêncio se não ouvíssemos os animais balindo e o insistente rangido da tesoura.
A terra é um murmúrio sem fim, e o vento, que de rajada passa, traz consigo, de longe, ou talvez não tanto, somente do outro lado das árvores, um balançar de flores de linho, leves flores que porventura o debuxador representou no cartão para que nada houvesse de ficar por dizer.
In “Poética dos Cinco Sentidos”, Bertand 1979
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"La Dame à la Licorne", exposição de 4 dos elementos do conjunto sobre os Sentidos. |
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“Nascimento da palavra, encontro da palavra, recriação do quotidiano numa dimensão estética original (…). Aqui, antes mesmo da primeira palavra, o exercício de congeminação e de captação da pureza inicial se aplica à própria origem do som, e essa relação que já notámos entre o verbo e a formulação do mundo, entretecida de sonoridades e de silêncios, feita primeira acção humana acompanhando o gesto - a manifestação oral. O ouvido, neste texto, mais do que um sentido passivo, articula a apreensão do som com a sua emissão e é esta, na sua complexidade gradual (vital e semiótica), que fundamentalmente cobre o corpo temático do texto. «O primeiro som, em tão grande silêncio nascido», é vibração cósmica, imediatamente canalizada para uma perspectiva humana ou cultural («corrente de ar», «respiração necessária») - e é preciso saber que a motivação pretextual deste escrito se situa na tapeçaria de Cluny que tem o mesmo título, e cujo corpo central, entre as damas, o leão e licorne, é um órgão -, é «um estalido de articulação, um murmúrio de músculos, o que for que seja sair do mundo de contemplar», e por isso indissociavelmente ligado ao gesto (atitude), que afinal lhe confere a essencial significação, que aliás pode ser (como é no texto) o surgimento da música. E Saramago conclui estas páginas com a abertura para os campos semânticos tão do seu agrado como a fundamentação humana da arte, a ideia que a apele e a grande plenitude que é a da satisfação que se segue ao efeito de comunicação: «Falta apenas que uma destas mulheres cante, para uma voz humana diga, por palavras nossas de humanos, o que tão grandes coisas significam. E, tendo-o dito, olhe para nós
em silêncio» (final do texto)."